Escrevendo no Substack: mídium, heterotopia e identidade
as sociabilidades e sensibilidades possíveis em cada espaço [3/4]*
*Este texto é parte de uma série de reflexões sobre minha relação com mídiuns literários, no contexto do que aprendi na disciplina Suportes de Inscrição e Meios de Circulação do Literário ministrada pela Profa. Dra. Luciana Salazar Salgado, em minha pós-graduação em Linguística na UFSCar. Inscreva-se abaixo para não perder a próxima!
Publicidade na vida acadêmica
A vida acadêmica exige hoje mais do que pesquisa e ensino: demanda também uma presença pública. Pesquisadores, confinados em instituições, historicamente se concentraram em tarefas como ler, escrever para publicações e apresentar aulas e eventos. Mas essas atividades não são mais o bastante. É preciso que essa vida se manifeste na internet, que a essas pesquisas existam em mais mídias, seja para atender políticas institucionais, para fazer “divulgação científica” ou para construir uma vitrine profissional frente a um mercado de trabalho que é cada vez mais… Mercado1.
Nas primeiras migracões de usuários brasileiros para o Bluesky, muitos buscavam replicar conexões da plataforma X, mas também aproveitavam a novidade para formar novos grupos e identidades, e para repensar suas relações com as plataformas que chamamos de redes sociais. Em uma dessas interações, algo que ficou marcado na minha memória, quando uma estudante perguntou: “Devo criar um perfil profissional no Instagram para falar de linguística ou uso o mesmo perfil pessoal?”. Essa dúvida ecoa a pressão de muitos profissionais que, como apontado por Chico Felitti em De Saída - A Vida Fora da Internet, sentem-se compelidos a criar conteúdo para redes sociais, seja para alcançar clientes, recrutadores ou alguma relevância.
A academia, ao que parece, precisa seguir lógica semelhante, utilizando a internet tanto para divulgar ciência quanto para afirmar as identidades sociais de pesquisadores. Em uma realidade de doutores e pós-doutores em um país com poucas vagas de docência (e falando nas humanidades, isso se torna um problema muito mais intenso), essas identidades podem abrir caminhos inesperados, como monetização ou construção de portfólios para candidaturas em vagas de docência, consultoria, ou qualquer outro trabalho que os aceitem.
Um espaço de reflexão heterotópico
A experiência que busco e proponho no Substack reflete essa dinâmica. Aqui, compartilho reflexões sobre teorias do discurso e filosofia, conectando-as ao entretenimento, à cultura, à política e à crise climática, sem me restringir a uma linha teórica ou de pesquisa específica. Mais do que isso, tento escrever de forma mais livre, rompendo com os rigores da escrita acadêmica.
É por isso, para mim, que o Substack funciona como uma heterotopia: um contraespaço textual que não é exatamente aquilo que um currículo Lattes valoriza. Ele contesta e inverte a lógica da produção acadêmica, sendo um espaço possível para experimentação e liberdade criativa.
Esse conceito de heterotopia também se manifesta em outros meios digitais, como os canais no YouTube de criadores como Jana Viscardi, Rita Von Hunty, PH Santos e Abigail Thorn. Essas plataformas se tornam contraespaços acadêmicos onde, por meio de análises temperadas com teorias, emergem possibilidades de resistência e de heterogeneização de opiniões. Esses criadores oferecem visões alternativas sobre os temas que abordam, contestando discursos dominantes e ampliando os horizontes de seus públicos, muitas vezes alcançados em uma lógica algorítmica da cibercultura, ainda que essa lógica trabalhe muito mais a favor de opiniões extremistas do que de conteúdos teórico-científicos2.

O Mídium
Chegamos ao recorte teórico principal desta parte: o conceito de mídium, segundo Régis Debray, um midiólogo (que estuda as mediações)3. Para ele, os objetos técnicos são mídiuns, indo além do que entendemos de meios de comunicação tradicionais (como jornais, artigos, programas de TV, livros…). Ele define mídium como:
“O conjunto, técnica e socialmente determinado, dos meios simbólicos de transmissão e circulação.”
Isso inclui elementos como uma mesa de refeição, uma sala de biblioteca ou uma máquina de escrever — espaços ou objetos que são, simultaneamente, vetores de sensibilidades e matrizes de sociabilidades.
Quem entra em contato com um vetor de sensibilidade é sensibilizado para uma dada direção. E esse vetor aponta para uma matriz de sociabilidade (uma instituição social, um discurso já consagrado). E eses elementos são mediadores de valores e crenças, já que todo objeto técnico sensibiliza as pessoas e aponta para uma matriz sociável que o legitima e é por ele sustentada. Assim, mídiums não apenas circulam sentidos; eles moldam o modo como entendemos e vivemos o mundo.
Vamos voltar melhor a análise para este próprio mídium, o Substack. Os artigos publicados por aqui podem ser interpretados como mídiuns: são capazes de transmitir valores, sensibilizar leitores e criar comunidades em torno de temas específicos. Eles funcionam como vetores de sensibilidades e matrizes de sociabilidades, exemplificado da seguinte forma:
Vetor de Sensibilidade e Matriz de Sociabilidade
Os artigos no Substack conversam com as sensibilidades dos leitores em questões específicas, o que pode direcioná-los para vários lugares. Aqui nos meus recortes, por exemplo, ao falar sobre a cultura digital e minha suposta tradução pirata do livro supostamente vazado de Harry Potter, posso provocar memórias similares de quem viveu a internet daquela forma, fora de uma lógica de processos algorítmos para controlar as informações. Posso incluve suscitar um repúdio ou afastamento aos leitores que, assim como eu, possuem uma relação problemática com a autora transfóbica da série. Vamos chamar esses efeitos de vetores de sensibilidades.
Eles apontam para matrizes de sociabilidade — as comunidades e discursos que sustentam esse conteúdo compartilhado. Um artigo sobre sustentabilidade pode atrair leitores preocupados com questões ambientais, fomentando discussões e agregando indivíduos que compartilham valores similares; e evocar em si um discurso constituinte4 de cientificidade. No Substack, essa matriz de sociabilidade é consolidada pela interação entre autor e público: leitores comentam, compartilham e se engajam, criando um espaço de trocas que transcende o texto escrito.
A metodologia OM/MO
Falar de OM/MO é pensar na interação entre a organização materializada (OM) e a matéria organizada (MO), e é uma ferramenta teórica importante para compreender as relações entre cultura, tecnologia e sociedade. Essa relação pode ser entendida da seguinte forma:
Organização Materializada (OM): Representa as estruturas sociais, instituições e sistemas de organização que se materializam em objetos, tecnologias e práticas concretas. Esse aspecto está alinhado à matriz de sociabilidade que acabamos de ver, já que ele mobiliza a organização social, materializada em práticas e instituições.
Matéria Organizada (MO): Refere-se aos suportes materiais, tecnologias e objetos que são organizados e utilizados conforme as necessidades e valores de uma sociedade. É a matéria organizada que traz um vetor de sensibilidade, com seus suportes materiais e tecnológicos que influenciam nossa forma de perceber e interagir com o mundo.
Usando a correlação entre esses conceitos como uma lupa, podemos tentar entender como as mudanças tecnológicas e materiais (MO) podem influenciar as estruturas sociais e culturais (OM), e vice-versa.
Aplicando os conceitos
Podemos usar os relatos da última postagem como exemplo, onde refletimos sobre a internet da partilha e trouxe meu relato sobre uma suposta tradução meio pirata, e aplicar essa metodologia e entender melhor seus conceitos:
Organização Materializada (OM)
A cultura digital dos anos 2000 representa uma OM específica, com várias possibilidades, como as que eu trouxe:
Comunidades online descentralizadas (como o extinto site pomodeouro.com)
Redes sociais mais analógicas, sem processos algorítmicos para distribuir informações (como o Orkut e o Tumblr)
Práticas de compartilhamento
Tradução colaborativa de obras literárias
Essa OM operava em uma matriz de sociabilidade, que se manifestava através de:
Interações em comunidades online temáticas
Práticas de trabalho colaborativo (traduzir, postar notícias)
Compartilhamento de conteúdo cultural de forma direta, sem impulsionamentos
Formação de identidades baseadas em interesses comuns
Assim, essa organização se materializava em estruturas como fóruns, comunidades temáticas e projetos colaborativos, refletindo aqueles valores de abertura e partilha que enfatizei.
Matéria Organizada (MO)
Os suportes materiais que possibilitavam essa cultura incluíam:
Computadores pessoais
Internet de banda larga emergente
Plataformas de compartilhamento de arquivos (repositórios, comunidades, torrents)
Softwares de código aberto ou de compra única
Anonimização (nicknames, avatares; sem necessidade de dados cadastrais em múltiplas plataformas)
Comunidades personalizáveis (como os blogs e os fóruns de discussão)
Com essa MO, podemos pensar em alguns vetores de sensibilidade dos indivíduos ou usuários, como:
Valorização do acesso livre à informação
Uso da internet como espaço de liberdade e criatividade
Interação com a cultura pop global do momento
Vontade ou disposição de colaborar e compartilhar
Trazendo o recorte desse contexto histórico, podemos ilustrar algumas mudanças na OM/MO com a transição para a cibercultura:
Nova OM:
Plataformas centralizadas (redes sociais ao invés de websites)
Algoritmos de controle de conteúdo (que podemos pensar como informação)
Protocolos de segurança e proteção, controlando acesso por logins e cadastros
Nova MO:
Uso de smartphones e dispositivos móveis, mais constantes e imediatos do que computadores
Plataformas de streaming e softwares com acesso através de pagamento mensal, em uma relação de aluguel e não de propriedade
As mudanças que essa transição trouxe no vetor de sensibilidade (da liberdade para a segurança) e na matriz de sociabilidade (de interações descentralizadas para plataformas controladas) podem também ser percebidas nas breves pinceladas que eu trouxe sobre a literatura na cultura digital:
OM: A organização de comunidades de fãs e práticas de tradução colaborativa criou novas formas de engajamento com obras literárias, com uma matriz de sociabilidade que permite a formação de comunidades globais em torno de interesses comuns.
MO: A disponibilidade de e-books e plataformas de compartilhamento permitiu o acesso a obras antes inacessíveis devido a barreiras econômicas ou sociais, com um vetor de sensibilidade que favorece uma relação mais participativa e criativa com o conteúdo literário.
Há uma interrelação bastante complexa entre os suportes materiais da tecnologia e as estruturas sociais e culturais que emergem em torno deles. E as transformações tecnológicas e culturais da internet são extremamente impactantes, pois moldaram não apenas as formas de acesso e interação com conteúdo literário, mas também as práticas sociais e identitárias de uma geração5.

Concluindo…
Escrever nesta plataforma, para mim, é mais do que um ato de expressão. É explorar um mídium que dá outra forma às convenções acadêmicas e permite novos modos de conexão e reflexão. No Substack, a possibilidade de imagens, de textos das mais variadas estruturas (em tópicos, com quebras em seções de forma aleatória, muitas vezes até sem o uso de maiúsculas), atrai cada vez mais escritores de literatura, jornalistas, teóricos e basicamente qualquer usuário da internet que sinta vontade de escrever além do espaço que uma postagem permite. Ainda que misture elementos da cibercultura (com certa distribuição algorítmica e centralização de código), ele é um espaço híbrido entre teoria e prática, cultural e heterotópico; um mídium que permite novas sensibilidades e sociabilidades.
Na próxima e última postagem desta série, quero trazer um pouco da minha área de pesquisa, a análise do discurso, para falar um pouco sobre quem escreve — sobre o autor, o escritor, ou sobre a figura imaginária por trás da criação de uma obra, e talvez sobre os poderes que ele pode ter sobre ela. Não perca!
Na minha opinião de economista, contador, linguista e brasileiro cansado, “mercado” é um sintagma extremamente desgastado e ao mesmo tempo utilizado como encerra-conversa, como argumento supremo e incontestável. É como se a palavra evocasse, nas discussões, a figura de um deus, uma dessas divindades que necessita de constante veneração e sacrifício de sangue em altares para que seja constantemente apaziguado, caso contrário uma terrível hecatombe acontecerá. O deus Mercado demanda o sacrifício (a morte) dos pobres e de seus bolsas-família, de políticas de distribuição de terras e de renda, de iniciativas de cota e de inclusão, caso contrário o dólar aumenta, a inflação corre solta e a bolsa cai. Verdadeiras catástrofes.
Já se sabe que os algoritmos de redes como Youtube, Instagram e Tiktok favorecem conteúdos polêmicos e que criam um “funil”, que conduz o usuário a conteúdos cada vez mais extremistas e supremacistas.
A principal obra sobre o tema é seu Curso de Midiologia Geral:
DEBRAY, R. Curso de midiologia geral. Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes,1990.
Um discurso de base que legitima outros discursos, como o jurídico, religioso ou científico.
Para um maior aprofundamento sobre as matrizes de sociabilidade, vetores de sensibilidade e a metodologia OM/MO, recomendo ler o artigo:
SALGADO, Luciana Salazar. Mídium e mundos éticos: notas sobre a construção do Observatório da Literatura Digital Brasileira (Medium and ethical worlds: notes on the construction of the Observatório da Literatura Digital Brasileira). Estudos da Língua(gem), Vitória da Conquista, BA., v. 18, n. 3, p. 33–53, 2020.
Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/estudosdalinguagem/article/view/7943